domingo, 23 de setembro de 2012

Licenciatura Indígena pauta a diversidade

Matéria publicada no Jornal Universitário da UFSC,  nº 419 - Agosto de 2011.

Por Cláudia Schaun Reis
Jornalista na Agecom

As calças jeans e as camisetas convivem bem com a tinta preta no rosto. Os flashes insistentes incomodam alguns, e os sorrisos não saem tão fácil dos adultos, mas há crianças que se postam em frente às câmeras, e jovens de penteado moicano com máquinas e filmadoras nas mãos, como que a revidar fazendo suas próprias imagens. A segunda aula magna do curso de Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica da UFSC, que aconteceu no dia 11 de maio, reuniu reitor, pró-reitores, professores, estudantes, autoridades e os alunos de tribos Kaingang, Xokleng e Guarani, que retornaram à Universidade após dois meses nas comunidades colocando em prática o que aprenderam no curso em seus primeiros trinta dias.
A data teve programação durante todo o dia: de manhã, os alunos se reuniram com o presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Márcio Augusto Freitas Meira, quando reivindicaram bolsas de estudos para que possam permanecer na Universidade e concluir o curso, e também no hall da Reitoria foi aberta a exposição "Guarani, Kaingang e Xokleng - Atualidades e Memórias do Sul da Mata Atlântica".
A mesa de abertura contou com a presença do reitor Alvaro Prata; do presidente da Funai; da diretora do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFH) Roselane Neckel e a coordenadora do curso Ana Lúcia Vulfe Nötzold. A mesa de debates foi composta pela pesquisadora do Laboratório de Etnologia Indígena Maria Dorothea Darella; o coordenador-geral da Educação Escolar Indígena da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidades (SECAD) do MEC, Gersen José dos Santos Luciano (Baniwa), e a procuradora da República em Santa Catarina Analúcia de Andrade Hartmann.

"Não conheço povo indígena que, já tendo contato com a cultura do branco, abdique do direito de frequentar uma escola "
Gersen Baniwa

DOS ÍNDIOS PARA OS ÍNDIOS

Doutor em Antropologia Social, Gersen Baniwa faz parte da primeira leva de professores de dedicação exclusiva da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) que leciona nos cursos de Licenciatura Indígena em Políticas Educacionais e Desenvolvimento Comunitário e Formação de Professores Indígenas. O docente analisa a valorização de sua cultura. "Sempre me perguntei quantos eram os portugueses que desembarcaram no Brasil, e qual o número de indígenas que havia aqui para recebê-los, e a resposta me parece óbvia. Em nenhum momento os índios foram capazes de se articular para enfrentar o inimigo comum. E nisso se passaram cinco séculos. Apenas na década de 1970 se iniciaram as primeiras reações mais conscientes dentro dessa relação histórica de dominação". "Nenhuma política", continua, "tem sido implantada porque o Brasil mudou sua percepção de mundo, e sim porque os povos indígenas tomaram outra atitude, e o ensino superior faz parte dessa reação".
Gersen confessa que o magistério voltado ao índio está em processo de construção. "Ainda não tenho clareza do que fazer em sala de aula. A escola foi inventada pelo mundo branco para atender às necessidades de industrialização e mercantilização, e talvez seja um erro adaptá-la às demandas indígenas".
Há menos de uma década atuando como categoria, os professores indígenas talvez busquem o meio termo. "A responsabilidade é grande. Como se define uma escola intercultural? Tem povos que nos cobram o ensino da língua nativa, mas não conheço índio que não queira aprender sobre as novas tecnologias. E será que ensinar português vai ser bom para esses povos? Tem quem ache que o índio que fala bem o português já não é mais índio", problematiza.
O duelo entre o novo e o antigo, no entanto, parece se desfazer a partir da visão do professor. "Há pessoas acreditando que a tradição e a modernidade são incompatíveis. Isso é um problema para os pensadores, porque os índios já resolveram a questão. Para eles, o caminho é a complementaridade: não conheço povo indígena que, já tendo contato com a cultura do homem branco, abdique do direito de frequentar uma escola".
Gersen ainda enfatizou o caráter social que a educação tem para sua gente. "Os índios são pragmáticos: quem vai à escola deve voltar sabendo fazer sabão, anzol, construir roupas, senão significa que não aprendeu direito. O estudo tem como objetivo melhorar a comunidade". 

sábado, 22 de setembro de 2012

Na terra do agronegócio, Povo Guarani celebra reunião

Matéria publicada no jornal Brasil de Fato, São Paulo, 18 a 24 de fevereiro de 2010.

Um encontro histórico reuniu indígenas Guarani de Paraguai, Argentina, Bolívia e Brasil em Diamante D'Oeste (PR). Entre os dias 2 e 5, eles puderam partilhar suas culturas sob a mesma língua, além de dialogar com representantes governamentais do Brasil e Paraguai, a quem entregaram suas reivindicações. "Acima de tudo, é maravilhoso, muito bonito esse reencontro", celebrou Williams Cerezo Villa, representante dos Guarani da região de Chuquisaca, na Bolívia. (p. 07)


ENCONTRO GUARANI: ENTRE A BELEZA DA REUNIÃO E AS CONTRADIÇÕES DA POLÍTICA.

MOVIMENTO INDÍGENA - Em evento com lideranças vindas de Argentina, Bolívia, Paraguai e diferentes regiões do Brasil, o Guarani puderam dialogar pela primeira vez, de forma conjunta, com representantes dos estados.

Por Spensy Pimentel
Diamante D'Oeste (PR)

Fica desde já, como marco histórico, o Encontro dos Povos Guarani da América do Sul - Aty Guasu Ñande Reko Resakã Yvy Rupa, realizado entre os dias 2 e 5, na Terra Indígena Tekoha Añetete, em Diamante D'Oeste (PR). Entre as centenas de participantes do evento, não se encontrava indígena que não estivesse encantado com  a beleza da reunião de tanta gente com fala, gestos e hábitos tão próximos, mas tão afastados no tempo e no espaço - sobretudo devido à violência da colonização nos últimos séculos.
Se alguns grupos, como os Guarani do litoral do Sul e do Sudeste do Brasil, mantêm até hoje um constante intercâmbio, em uma gigantesca rede que vai do Espírito Santo até a Argentina, outras parcelas desse povo vivem praticamente à parte das demais. Para se ter uma ideia, os Guarani da Bolívia (outrora conhecidos como Chiriguanos), que migraram para lá há mais de 400 anos, vindos da região que hoje corresponde à fronteira entre Mato Grosso do Sul e Paraguai, nunca mais haviam mantido contato regular com os Guarani do Brasil. Em Añetete, muitos se emocionaram ao conhecer seus 'parentes' distantes.
"A língua é muito parecida. A parte religiosa, também. Às vezes, a dança é um pouco diferente, um tem o violão, o outro não, mas o conteúdo é muito parecido. Somos um só povo", orgulha-se Marcos Tupã, cacique da aldeia de Krukutu de São Paulo, lembrando os vários momentos em que os xamãs Guarani exibiram seus cantos e danças durante o encontro. "Acima de tudo, é maravilhoso, muito bonito esse reencontro", diz Williams Cerezo Villa, representante dos Guarani da região de Chuquisaca, na Bolívia.

Williams diz que os Guarani da Bolívia não veem contradição entre participar da vida política do país e manter as tradições.

Em um mundo como o Guarani, em que "cultura" é um termo estreitamente vinculado a temas como terra, saúde e educação, a pauta oficial do encontro terminou praticamente confinada a questões ligadas à área da 'cultura', conforme entendido por nós, brancos. Organizado pelo Ministério da Cultura  (MinC), o evento culminou no lançamento de uma carta de reivindicações, recebida pelos ministros da Cultura do Brasil, Juca Ferreira, e do Paraguai, Ticio Escobar.
A carta pede a criação e uma Secretaria Especial de Representação do Povo Guarani, vinculada ao Mercosul Cultural, com integrantes escolhidos pelos próprios indígenas, além de um debate permanente, no âmbito do bloco, sobre os direitos dos Guarani, incluindo-se a realização de encontros regulares do povo Guarani de Brasil, Paraguai, Argentina e Bolívia. O Mercosul, reivindica o documento, tem de mudar suas leis de fronteira para permitir o "livre trânsito cultural" dos indígenas, num território que "sempre pertenceu" aos Guarani. De forma sintética, ainda são reivindicadas políticas públicas para gestão territorial, saúde, educação e comunicação, entre outros, além de combate ao preconceito e à violência contra os indígenas.
Para vários dos participantes, a carta, ainda que limitada em seus temas, já representa uma vitória, dada a histórica dificuldade na relação dos povos indígenas com os estados nacionais da região. "Estamos começando a abrir a porta e olhar para dentro da casa para ver o que tem", compara o cacique Kaiowa Ambrósio Vilhalba, da aldeia Guyraroka, de Caarapó (MS).

"O  que mais nos dói é que obrigaram as comunidades a sair, mas as áreas não foram alagadas. Hoje estão ocupadas por grandes fazendas".

Há três anos, Ambrósio foi a estrela do longa metragem Terra Vermelha, do ítalo- chileno Marco Becchis, um filme de ficção que espelhou muito de sua luta real como líder indígena.
Para representantes dos Guarani da Bolívia e do Paraguai, entretanto, onde os povos indígenas têm maior tradição de participação na vida partidária e organização como movimento social, faltou "política" no evento. "Faltou uma análise da conjuntura de cada país. Nós pedimos, mas ninguém deu bola. Há alguns indígenas que são funcionários do governo e eles não querem chocar seus patrões", critica Mario Rivarola, da Organização Nacional dos Aborígenes Independentes (ONAI), do Paraguai.
"Na Bolívi, temos um sistema muito avançado política e organicamente, também porque contamos com um indígena na presidência da República, e estamos numa transição do neoliberalismo para um Estado plurinacional. Queremos dar mais apoio a nossos irmãos do Brasil e do Paraguai", diz o já citado Williams, que, além de cacique Guarani em Chuquisaca, também representou a Assembléia do Povo Guarani (APG) no evento no Paraná.
A APG surgiu nos anos de 1980 e hoje suas decisões são reconhecidas pelo Estado boliviano como decisões tomadas pelo Povo Guarani. Tem uma estrutura de escolha de representantes em mais de 350 comunidades, com processos de decisão, mandatos e encargos bem definidos. O ex-presidente da APG Wilson Changaray se elegeu deputado para o Parlamento Boliviano em dezembro, junto com outros dois Guarani. Williams diz que os Guarani da Bolívia não veem contradição entre participar da vida política do país e manter suas tradições. "Não é que estamos esquecendo nossa cultura. Estamos entrando na política para depois transformá-la conforme os nossos interesses e pontos de vista. Estamos como que camuflados".

CONTRADIÇÕES - Para um governo com perfil do brasileiro, com ministérios inteiros francamente alinhados com setores conservadores, é certamente notável ouvir do ministro Juca Ferreira declarações de apoio às reivindicações indígenas. "Nós, do Ministério da Cultura, não temos nenhum medo da presença de povos indígenas na região de fronteira e da demarcação de suas terras", disse ele, durante sua passagem pelo encontro, no dia 5. "Pensem em nós como aliados".
As contradições, contudo, não passaram longe de Añetete. O encontro teve o patrocínio da binacional Itaipu, que tem em seu histórico uma série de violações  aos direitos dos Guarani. Do lado brasileiro, a empresa já assumiu, há alguns anos, o ônus da reparação a diversas comunidades pela retirada forçada de aldeias inteiras à época da formação do lago da usina, nos anos de 1970. A Tekoha Añetete é uma das terras indígenas formadas depois de muita disputa e ocupações de terras.
Ainda assim, há uma série de outras comunidades que não consideram resolvida sua disputa com a empresa. Entre os participantes do evento estavam Oscar Benitez e Arnaldo Alves, dois Avá - Guarani da aldeia de Vy'a Renda, uma ocupação de terra, ainda não regularizada, na região de Santa Helena, a cerca de 40 km do local onde aconteceu o encontro. Eles contam que não só a comunidade deles, como pelo menos outras quatro, nos municípios de Guaíba e Terra Roxa, não foram seque convidados a participar do evento. "Nem Funai nem Itaipu nos dão apoio lá onde estamos. Só o Ministério Público conseguiu que pelo menos haja atendimento de saúde", conta Oscar.

 Boatos começaram a circular dando conta de que os fazendeiros se articulavam para armar um confronto com os índios caso houvesse o evento.

O Ministério da Cultura diz que a responsabilidade pelos convites para o evento era dos próprios índios, conforme estabelecido nas reuniões preparatórias. Não foi possível fazer contato telefônico com o cacique Mário, de Añetete, que segundo o ministério, era responsável pelo convite às aldeias dessa região. Até o fechamento desta matéria, a assessoria de Itaipu não respondeu às mensagens eletrônicas da reportagem.
Do lado paraguaio, o problema com Itaipu é muito maior. Mario Rivarola, da ONAI, conta que que foram 60 as comunidades desalojadas por Itaipu nos anos 1970, muitas vezes com uso da força (à época, o país era governado pela ditadura do general Augusto Stroessner). "Faziam promessa, diziam que iam reassentar e indenizar as pessoas. Tudo ficou só na teoria. Os que não aceitavam sair eram levados por policiais e militares", diz. "O que mais nos dói é que obrigaram as comunidades a sair, mas as áreas não foram alagadas. Hoje estão ocupadas por grandes fazendas".
Rivarola diz que o contraste com a situação das comunidades brasileiras, que já receberam indenização de Itaipu, é gritante. "Aqui elas já têm escolas, postos de saúde. Lá, ninguém recebeu um tostão de Itaipu, o dinheiro foi todo embolsado pelos corruptos do país", relata. Mesmo o governo de Fernando Lugo, que quebrou a hegemonia centenária das oligarquias no poder, ainda não foi capaz de reverter a situação. Ele lembra: "Durante muito tempo os liberais continuaram mandando em Itaipu, recentemente é que foi revertida a situação. Esperamos que seja montado um programa de apoio ao desenvolvimento dos povos indígenas. Até agora, o que há é, no máximo, assistencialismo.

O ESTADO CONTRA - Se o evento de Diamante D'Oeste pode ser considerado um marco na relação dos Guarani com os governos da região - uma vez que, pela primeira vez, surge a possibilidade de serem ouvidos como um povo pelo conjunto dos países que habitam -, vale lembrar que não chega a ser inédito, considerando apenas a articulação que promoveu.
Desde 2007, um grupo de organizações indígenas e indigenistas promove a campanha independente Povo Guarani, Grande Povo, com o objetivo de articular as populações Guarani dos diversos países e lutar pelo reconhecimento de seus direitos. A iniciativa surgiu como fruto do 1º e do 2º Encontro Continental do Povo Guarani, realizados ambos no Rio Grande do Sul, em 2006 e 2007. O primeiro desses encontros, em São Gabriel, lembrou os 250 anos do martírio do herói Sepé Tiaraju e reuniu mais de mil Guarani de Brasil, Argentina, Paraguai, Bolívia e Uruguai.
Ainda que, no Brasil, o governo federal se mostre mais permeável ao diálogo com os indígenas, vale lembrar que o encontro do Paraná originalmente estava programado para ocorrer no final de 2008 entre Dourados e Caarapó, no Mato Grosso do Sul. Foi transferido porque não só os políticos locais se negaram a dar apoio à realização do evento como ainda hostilizaram os organizadores.
Segundo fontes ouvidas pela reportagem, autoridades da região chegaram a dizer que seria uma 'afronta' aos governos locais a realização do evento. Boatos começaram a circular dando conta de que os fazendeiros se articulavam para armar um confronto com os índios caso houvesse o evento, e, por fim, o Ministério da Cultura resolveu transferi-lo devido à 'falta de segurança'.
No Mato Grosso do Sul vivem 45 mil dos 55 mil Guarani que moram no Brasil. A tensão entre índios e fazendeiros aumentou na região depois que, em 2008, a Funai editou portarias de demarcação de terras em 26 municípios da região sul do Estado. Desde então, o governo de André Puccinelli (PMDB) e seus prefeitos aliados vêm assumindo posturas sistematicamente contrária aos índios - chegando a disponibilizar recursos públicos para que fazendeiros contestem os estudos antropológicos que definem as terras a serem declaradas como de ocupação indígena tradicional. Vários indígenas já morreram ou foram feridos em confrontos desde então.
"Em muitas regiões do Brasil, os Guarani são discriminados e perseguidos, impedidos de acessar seus direitos. Isso é inadmissível", afirmou o ministro Juca Ferreira no encontro. E entrevistas e conversas que manteve em Añetete, ele lamentou a transferência do evento. Por enquanto, a verdadeira afronta, dos políticos sul-matogrossenses ao poder federal e aos direitos indígenas, fica por isso mesmo.



terça-feira, 18 de setembro de 2012

Trilha das Lágrimas

Cont. Matéria Super Interessante, n. 12, ano 10, dezembro de 1996.



Entre 1830 e 1839, o governo americano deportou 35.000 índios de cinco tribos para um Território Indígena a oeste do Mississipi. Eles não tiveram a mesma sorte dos Panarás. Morreram 10.000 na marcha forçada.

Em 1830, os Estados Unidos criaram um Território Indígena, a oeste do rio Mississipi, para 27 tribos. Cinco delas - os Choctaw, os Creeks, os Chicksaws, os Seminoles e os Cherokees - resistiram. Não queriam se mudar.
Foi um dos capítulos mais vergonhosos do choque da civilização ocidental com os índios. Em 1831, líderes da tribo Choctaw, subornados, entregaram suas terras. Mil índios caminharam 980 quilômetros escoltados por soldados. Metade morreu. Em 1836, 15.000 Creeks foram deportados; 3.500 morreram.
Os Chicksaws andaram 400 quilômetros e foram mais poupados. Os Seminoles, da Flórida, lutaram de 1835 a 1842. Três mil foram removidos, mas a tribo habita, até hoje, os pântanos de Everglades, na Flórida.
A transferência dos Cherokees ficou conhecida como a A Trilha das Lágrimas. A Suprema Corte reconheceu seus direitos, mas o governador da Georgia não quis conversa: em 1838, atacou e deportou 20.000. Foram 1.300 quilômetros a pé sob inverno gelado. Morreram 4.000.
Hollywood ainda não contou essa história. 

Panarás: há 20 anos.... e hoje.

Continuação da matéria da Super Interessante n. 12, ano 10, dezembro de 1996.

Em 1975, quando chegaram ao Xingu, os Panarás foram fotografados para o arquivo da Escola Paulista de Medicina. Vinte anos depois, conversaram com a SUPER.


O PEQUENO GIGANTE

Akè Panará, 55 anos, é um estadista. Um Winston Churchill Panará. Quando seu povo perambulava pelo Xingu, dizimado e humilhado, Akè ajudou-o a reencontrar o orgulho. Foi uma bela volta por cima: afinal, nenhuma das dezesseis tribos do Parque teve peito para lutar pelo território original e voltar. Só os Panarás. Akè só tem 1,68 metros de altura, mas enxerga alto. Virou chefe em 1982 porque era inteligente, capaz de fazer bons discursos rituais e hábil para lidar com os brancos. Além disso - e de mais seis filhos, sete netos e três casamentos - é um grande gozador. Em Brasília, assistiu, na casa de Schwartzman, ao filme Dança com lobos, de Kevin Costner. "Gostei, mesmo, foi daqueles índios de cabelo punk" (os Pawnees), diz. "Nossa, que índio brabo! Os índios americanos são muito brabos." Akè ficou muito brabo em 1991, quando reviu o Peixoto de Azevedo destruído pelo garimpo: "Os brancos comeram minha terra. Queimaram a mata e estragaram a água. Me deu uma raiva muito grande. Bando de ladrões".


O AMIGO DO RONALD REAGAN

Sôkriti Panará tem 53 anos. Uma vez foi a Brasília levar  mulher e a filhinha, com pneumonia grave, para o Hospital de Base. Ficou semanas no hospital lotado, sob luz artificial, sem falar português, sem arredar do lado da menina. Um dia, recebeu a visita de um antropólogo. Foi uma grande alegria ver uma cara conhecida. Conversaram um pouco e o antropólogo saiu, a seu pedido, para comprar bananas. Mas Sôkriti também queria sair. Tinha vontade de perambular, como os guerreiros fazem, pelo mato. Saiu, viu muita gente na rua, andou, andou. Viu uma avião passando e resolveu ver de perto. Andou muito. De noite, dormiu num ponto de ônibus. No outro dia, andou mais, saiu da cidade, achou uma mangabeira, um pé de pequi, água e alimentou-se. O antropólogo já estava em pânico mas, enquanto isso, Sôkriti andava até chegar ao aeroporto. Ficou olhando os aviões, imensos. Pulou uma cerca, chegou mais perto e foi preso pelos soldados que faziam a segurança da visita a Brasília do presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, naquele dia, 30 de novembro de 1982. Levaram-no para o quartel. Devem ter gostado muito dele, porque lhe deram um tênis Kichute, um calção e uam carona de volta.

OS HOMENS DÃO MEDO

Krikati teve seis filhos. Quatro morreram. O mais velho tombou nas mãos dos Kayapós em 1967, na última batalha entre as duas tribos. Seus três maridos também morreram. "Eu gostava mais do primeiro, Periyi, que os Txucarramãe também mataram. Ele era bonito e muuuuuito alto".
Em 1975, quando chegou ao Xingu, veio com o filho Possuã.
Em 1996, a SUPER encontrou-a com uma das seis netas.
Krikati viu cidade só uma vez, São Felix do Araguaia, e não gostou nada. "Tem muito carro e muita gente. Gente demais". Antes, só havia feito uma viagem, para o Xingu, quando seu povo foi transferido. "Eu vim no segundo avião. Nós entramos e ficamos nos segurando, firmes. Tapei a cara com a mão e fiquei com medo de olhar para baixo. A gente chorava de medo. Quando chegamos, não entendi nada. Os Txucarramães e o chefe deles, o Raoni, nossos inimigos, estavam lá, nos esperando. Muito estranho".
O mundo é confuso. Não há dúvida. Mas, para Krikati, as mulheres são sábias. "Branco, Panará, é tudo igual: os homens dão medo. As mulheres é que são normais. Elas pensam mais".



COQUETEL DE GASOLINA

Kreton Panará, de 43 anos, é um caso à parte. É o adulto que melhor fala português. Sempre foi curioso e arrojado. Em 1978, resolveu virar pajé para curar doenças. Decidido, bebeu um coquetel de gasolina e mertiolate - para descobrir o segredo do poder dos brancos. Acabou no posto Diauarum com uma intoxicação violenta.
No Xingu, os pajés fumam fumo de corda, engolem fumaça e entram em transe. Viajam para baixo da terra, onde está a aldeia dos mortos, e descobrem o 'feitiço' responsável pela doença - que pode ser uma escama de peixe, um dente de macaco ou uma pedra. Aí, 'extraem' o feitiço do doente e, pronto, a doença está está curada. Kreton virou pajé famoso e chegou a ganhar bem fazendo curas em outras tribos.
Mas, para boa parte do seu povo, ele é um sujeito ardiloso, ambicioso e trambiqueiro, com apetite demais pelos bens dos brancos. E que sempre criou confusão. A maior foi em 1983, quando passou um período bígamo, casado com Sekiukiú e Kôterti. O costume, abandonado pelos Panarás no passado, só é tolerável quando as mulheres forem irmãs - pois aí, acredita-se, elas não brigam. Só que elas não eram. Foi um escândalo, mas durou pouco: as moças o dispensaram.

QUATRO MARIDOS DESINTERESSANTES

Yokré, de 45 anos, teve quatro maridos, sete filhos e três netos. Três filhos morreram. "O primeiro marido foi Soakien, mas eu não gostava. Ele morreu no Peixoto, de doença no peito, antes do Cláudio (Villas Boas) chegar". Depois, casou-se com Sikiapayu, mas "separei logo, porque não dava certo". Aí, veio Pêinsi, que "era mau marido, caçava pouco". O quarto, Seakèri, cometeu um erro grave: bateu nela. Yokré atacou-o com bordunadas na cabeça, conta-se, numa cena dantesca. Por isso ganhou o apelido de porisa, 'polícia'. Não deu sorte com os homens.
Hoje, espera, pacificamente, na aldeia do Xingu, a mudança para Nacypotire. "Meu filho e meu irmão já estão lá. Aqui tem formiga brava e a terra é cheia de raízes. Na roça, arranham a mão da gente. Lá é melhor". Sobre os brancos, Yokré é taxativa sobre o que aprendeu: 'Todo cuidado é pouco".


Para saber mais:

The Panará of the Xingu National Park, Stephan Schwartzman, Tese de Doutorado de Antropologia, Universidade de Chicago, 1987.
A Marcha para Oeste, Orlando e Cláudio Villas Boas, Globo, São Paulo, 1994.
Linguas Brasileiras, Aryon Dall'Igna Rodrigues, Loyola, São Paulo, 1994.
O Brasil Grande e os índios Gigantes, Aurélio Michiles, vídeo, em cores, 47 min., Instituto Socioambiental, São Paulo, 1995.
The Tribe that Hides from Man, Adrian Cowell, vídeo, em core, 78 min., BBC TV, Londres, 1973.

Índios Gigantes: uma história com um grande final feliz

Matéria publicada na Superinteressante n. 12, Ano 10, dezembro de 1996.

Primeiro, eles assombraram o país: eram os índios mais altos já encontrados. Depois,  foram removidos, exilados, humilhados e quase extintos. Mas se reergueram, reagiram e recuperaram suas terras. Essa é a saga do Panarás - os gigantes da vontade.

Por Ricardo Arnt, de São José do Xingu.


Eles se esconderam durante 200 anos no fundo da floresta do norte do Mato Grosso. Tão desconhecidos que nem nome tinham. Eram chamados de Krenacore, Kreen-akarore ou Krenhakore. Eram uma lenda: "os índios gigantes".
Em 1970, o governo mandou construir a estrada Cuiabá- Santarém em cima da terra deles, na bacia do Rio Peixoto de Azevedo. Uma expedição chefiada pelos irmãos Orlando e Cláudio Villas Boas partiu para encontrá-los. Mas os vírus do homem branco chegaram primeiro. Rendidos pela febre e pela morte, afinal se deixaram vacinar. Descobriu-se, então, que poucos eram altos. Não eram gigantes como o mito fazia supor. E tinham nome: chamavam-se Panarás.
A abertura da estrada ao tráfego, em 1974, completou o estrago. De 400 sobraram apenas 79. Por isso, em 1975, a Fundação Nacional do Índio (Funai) levou todos os sobreviventes, de avião, para o Parque do Xingu. Foi uma viagem incrível. Em um instante, eles foram para outro mundo. Lá, perambularam feito fantasmas, durante anos, trocando de aldeia sem parar.
Esta seria mais uma história triste, igual à de muitos outros índios brasileiros, mas os Panarás se reergueram e se recuperaram. Retornaram ao território original. E acabaram convencendo a Funai a apoiá-los. Hoje, vinte anos depois, estão voltando pra casa, felizes. Quem disse que não eram gigantes?

UMA VIAGEM POR CIMA DAS NUVENS

Nos anos 70, a presença de índios gigantes e misteriosos no caminho do progresso da estrada Cuiabá- Santarém hipnotizou o Brasil. Parecia que a história ia colidir com a pré-história. A expedição para contatá-los foi a mais fotografada da antropologia brasileira. A imprensa acompanhou tudo. O poeta Carlos Drummond de Andrade fez um poema para eles e até o beatle Paul McCartney compôs uma música chamada Kreen-Akrore.
Os Panarás são os últimos descendentes dos Kayapós do sul, grupo nômade que falava uma língua da família Jê e habitava o Brasil Central, no século XVIII, do norte de São Paulo até o Mato Grosso. Lutaram muito contra os portugueses. A descoberta de ouro em Goiás, em 1722, em seu território, empurrou os que restaram para as matas ao norte.
Segundo o antropólogo americano Stephan Schwartzman, "há evidência etno-histórica de que os Panarás ocupavam a bacia do Peixoto de Azevedo de 1920". Schwartzman, que acompanhou a SUPER nesta reportagem, fez tese de doutorado sobre o grupo na Universidade de Chicago e é um dos três não-índios que falam a língua Panará. Os outros dois são antropólogos ingleses, Nenhum brasileiro.
A ferocidade dos gigantes era lendária. Quem mais espalhou notícias sobre eles foram os inimigos Txucarramães - em parte para aumentar a própria valentia. Orlando Villas Boas, hoje com 82 anos, conta que "em 1950, os Kayabis também falavam deles. Diziam que eram muito grandes. E morriam de medo". De avião, os indigenistas viam as aldeias no Peixoto de Azevedo, mas acharam melhor não tentar o contato. Em 1961, o geógrafo inglês Richard Mason foi morto ao entrar nos domínios dos Panarás.

TEMPO DE MORTE

Nos anos 60, duas expedições tentaram encontrá-los, em 1967 e 1968. Fracassaram. Mas em 1970, o governo anunciou o Plano de Integração Nacional e a construção das estradas Transamazônica, Manaus -  Boa Vista e Cuiabá - Santarém. A Funai recebeu a missão de 'pacificar' trinta tribos e os Villas Boas - que haviam criado o Parque Indígena do Xingu, em 1961, reunindo quinze tribos - foram chamados para 'atrair' os gigantes.
A estrada estava chegando às aldeias, em 1972, quando a terceira expedição partiu da Base Aérea do Cachimbo, no sul do Pará. Eram 28 pessoas. Caminharam, quatro meses, até atingir o Peixoto de Azevedo, onde fizeram uma pista de pouso. Queriam convencer os Panarás a não atacar os operários que viriam em seguida.
Mas, em julho de 1972, 2.070 trabalhadores e 347 veículos já estavam na região. Os índios espionavam e fugiam. Em maio, flecharam um trabalhador. Foi aí que os vírus atingiram as aldeias, como um raio seco. Os Panarás começaram a morrer, com tosse, dor pulmonar e febre. "Iam caindo e morrendo", disse o chefe Aké Panará à SUPER. "Morreu todo mundo pelo caminho".

DEPONDO ARMAS

Em fevereiro de 1973, os índios, doentes, aceitaram o contato. Um grupo se aproximou do acampamento dos Villas Boas pela margem oposta do Peixoto de Azevedo. Cláudio entrou numa canoa, atravessou o rio, discursou em vários dialetos e ofereceu um facão. Um guerreiro adiantou-se e aceitou o que a mão branca estendia. Foi o fim da guerra. Logo mais, a Funai seria recebida nas aldeias.
Antes de retornar ao Xingu, em abril de 1973, Cláudio e Orlando contaram 140 Panarás, mas não sabiam quantos haviam morrido. Constataram que a maioria tinah baixa estatura. Mas havia, sim, um grupo bem alto. "Tinha uns oito de mais de 2 metros", assegura Orlando. "Mas morreram logo depois da atração".
A Funai mandou funcionários para a área, mas o 'contato' havia fugido do controle - se é que em algum momento esteve controlado. Com a tribo dizimada pela doença, os índios começaram a se acusar de feitiçaria e a se matarem uns aos outros. Em dezembro de 1974, a estrada foi aberta e tudo piorou. Caminhoneiros, garimpeiros, turistas chegavam. Em pouco tempo, os lendários gigantes se transformaram em mendigos.
A remoção para o Xingu, então, se impôs como saída. "Vimos nos jornais a foto de uma índia mendigando", lembra Orlando. "Ficamos desesperados. Metade já havia morrido. Nós fomos lá e organizamos a transferência. Foi um ato de salvação".
Assim, em janeiro de 1975, um C-47 da FAB levou 79 sobreviventes trôpegos, em duas viagens, para o Parque do Xingu. Foi assustador. Eles mal entendiam o que estava acontecendo. "A gente ficou se abraçando, chorando de medo", conta Yokré Panará. "Eu tremia, apavorado", diz Teseya Panará. A viagem no céu iniciou vinte anos de exílio.

...E CASA DOS HOMENS FOI REERGUIDA

Em dois anos, os Panarás se recuperaram. Quando chegaram ao Xingu, em 1975, uma equipe da Escola Paulista de Medicina, chefiada por Roberto Baruzzi, examinou-os um a um. "Eles estavam desnutridos, anêmicos, gripados e apáticos", disse Baruzzi à SUPER. A altura média dos homens era 1,68 metros, padrão do grupo Jê. Havia alguns de 1,80 metros, mas nenhum beirando 2 metros. É intrigante. Todos os adultos Panarás com quem a SUPER conversou são enfáticos sobre a existência de parentes "muuuuito altos" no passado. Eles não usam metro, mas sabem sinalizar, perfeitamente, 2 metros de altura. Teseya Panará chegou a fazer uma lista de quatorze gigantes que conheceu.
Para o geneticista Francisco Salzano, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, não se trata de um fenômeno. "Numa população, podem surgir indivíduos excepcionalmente altos devido a combinações genéticas específicas e influências ambientais favoráveis, como boa alimentação", explica. "A expressão individual, o fenótipo, varia muito do conjunto gênico, o genótipo. É pena que a Genética não possa estudar esses casos. Mas não há documentação", lamenta Salzano. As fotos dos gigantes (publicadas nesta reportagem), o testemunho de Orlando Villas Boas e dos Panarás é o que resta.
Mas intrigante, mesmo, era o Xingu para os Panarás: outro mundo. O rio era muito mais largo do que os riachos da bacia do Peixoto de Azevedo. Pescar, só de canoa, mas eles nunca tinham visto uma. Quase não havia caça e o solo era pobre. Por isso, mudaram muito de aldeia. Chegaram a aceitar o convite dos ex-inimigos Txucarramães, cujo chefe, Raoni, estava só de olho nas mulheres. Seis meses depois, quando desistiram de ser inquilinos da aldeia de Raoni, deixaram sete moças. Com a auto-estima a zero, abandonaram costumes e rituais. Mais gente morreu. Em julho de 1976, eram só 64. Passavam horas parados, prostrados.

READAPTAÇÃO

As coisas só mudaram quando ganharam uma aldeia separada, com assistência médica regular. "Aí a saúde melhorou", conta Schwartzman. "Eles fizeram roças e ressurgiram lideranças, ritos, danças e canções. Os homens aprenderam a pescar com linhas e a fazer canoas".
No final de 1976, os bebês recomeçaram a nascer. Em 1980, já eram 84. Em 1989, a tribo fixou-se, afinal, na aldeia do Rio Arraias. Em 1992, eram 135. Schwartzman continua: "Quando fui pesquisá-los, em 1980, diziam que a aldeia tradicional tinha uma Casa dos Homens, no centro da praça. E que quando tivessem mais meninos a reconstruiriam. Em 1991, voltei ao Xingu e lá estava ela, de pé".

UM LUGAR ONDE NÃO SE FAZ O QUE NÃO SE QUER

Retomar o rio Peixoto de Azevedo passou a ser uma idéia fixa desde que os Panarás voltaram a sonhar. No Peixoto eles tinham castanha do pará, açaí, cacau, cupuaçu, buriti, batata, cará, banana, milho, mandioca, abóbora e algodão. Havia muito peixe e caça, queixada, macaco, jabuti, jacu e mutum. E mel.
É claro que evoluíram no Parque. Trocaram o machado de pedra pelo de aço, aprenderam a fazer canoa, a atirar de espingarda, a pescar com anzol e linha. Habituaram-se à faca, à pilha e à gasolina. Vestiram roupas de branco e começaram a falar português. Açúcar, antibióticos e outras novidades deixaram muitos banguelas.
Mas jamais perderam a identidade. E mantiveram o bom humor. Banguelas ou não, riem muito. Os homens adoram piadas, sobretudo as sexuais. Coçam 'as partes' abertamente, adoram palavrões e divertem-se soltando puns. Não existe privacidade. Todos sabem tudo de todos.
A higiene pode chocar não-índios. Os Panarás eram nômades. Eles cospem e jogam tudo no chão. As crianças rolam, nuas, 'à milanesa', na terra. E os bebês brincam com ratinhos. Em compensação, assim como não têm horário pra comer, banham-se a toda hora, no rio. Para eles, os brancos é que têm pouco asseio: a prova é que têm banheiro dentro de casa e usam a mesma privada. Para um Panará, há poucas idéias piores do que um banheiro público. Além disso, os brancos vão a churrascarias e comem carne sangrando - como bichos.

TOLERÂNCIA

A economia da tribo não gera excedente. Eles não produzem a mais, para trocar ou vender. "E ninguém faz o que não quer", diz Schwartzman. "O poder é consensual. O chefe atende a demandas. Não há coerção. Mas há limites: quando alguém é considerado anti-social e feiticeiro, é morto".
As casas pertencem às mulheres, que vivem com o marido, a mãe, os filhos pequenos, as filhas e os maridos das filhas. Os filhos, quando se casam, vão morar na aloca da esposa. Se o casamento monogâmico acaba (e acaba com frequência), o homem é que sai. É comum casaram-se cinco vezes. E há adultérios, sim, apesar de temidos pelo escândalo e pela violência que podem produzir.
"Se você buscar o que para nós parece religião, não acha", diz Schwartzman. Eles acreditam que a aldeia dos mortos fica sob a terra e que eles, de vez em quando, 'puxam' os vivos. Mas também há mortos no céu. As estrelas são Panarás que se foram: as pequenas, os homens; as grandes, as mulheres. Para eles, um dia, uma Panará pariu uma sucuri, que foi esquartejada pelo marido. Dos pedacinhos nasceram os brancos. É por isso que tantos brancos no mundo.

O ÊXODO PELO AVESSO

"É kranquilo!', diz Kreton, confundindo os 'k' da língua Panará: "Aqui em Nacypotire vai ser kranquilo". Kreton, Kokè e Akè foram os primeiros a constatar, de avião, em 1991, que havia um pedaço intacto nas antigas terras, nas cabeceiras do rio Iriri. Eram uns 500.000 hectares, a quinta parte dos 2,5 milhões que tinham antigamente. O restante fora ocupado por 23 cidades. O Peixoto de Azevedo, coitado, virou um lamaçal.
Primeiro, os Panarás pediram ajuda à Funai e foram a Matupá de ônibus. Lá, alugaram um avião e sobrevoaram o rio. Foi um choque. Estava quase tudo arrasado. Foram a Brasília, conversar com o governo. Com a ajuda de organizações de apoio aos índios, como o Instituto Socioambiental, a Fundação Mata Virgem e o Fundo de Defesa do Ambiente, contrataram advogados.
Em 1994, deram um passo gigantesco: doze guerreiros voltaram ao Iriri e construíram a primeira maloca da aldeia de Nacypotire. Em dezembro, a Funai reconheceu a Área Indígena Panará. E, no último dia 1º de novembro, o Ministério da Justiça decretou a posse permanente dos Panará sobre 495.000 hectares de terra.
Hoje, as famílias estão voltando. Nacypotire já tem dez casas.  A SUPER contou 75 Panarás no Rio Iriri e 99 no Rio Arraias, no Xingu, esperando para se mudar. Mas a aldeia nova precisa de uma boa roça, para sustentar todos, o que só poderá ser testado na próxima estação seca, em maio de 1997. Ninguém quer ficar no Xingu. Orlando Villas Boas, que os levou para lá, sabe porque: "A cabeceira do Iriri é a terra deles. É um pedaço longínquo que pode ser preservado. Vale a pena voltar.

UMA LÍNGUA FALADA POR 177 PESSOAS

O Panará tem afinidade com línguas Kayapós, mas um Panará e um Kayapó não se entendem, assim como não se entendem um português e um italiano, embora pertençam à mesma família linguística (românica).
Joseph Grin=nberg, da Universidade de Stanford, na Califórnia, diz que todas as línguas nativas americanas provêm de três raízes: o esquimó (norte do Canadá), o nadené (noroeste da América) e o ameríndio (Américas Central e do Sul). "A tese é aceita, mas não foi demonstrada", diz Aryon Dall'Ígna Rodrigues, da Universidade de Brasília. "Talvez nem seja demonstrável".
Mais de 90% das línguas indígenas brasileiras nunca foram descritas. Admite-se que o ameríndio gerou uma árvore com dois grandes troncos, como o tukano, o nambikwara, o aruák e o yanomami. E ainda há línguas isoladas, como o trumái, o tikúna e o irantxê. Uma babel, enfim.
No descobrimento, eram 1200 línguas. Hoje, restam 177. O tronco tupi, com as famílias tupi-guarani (29 línguas) e karib (21 línguas) é o mais importante. No tronco macro-jê destacam-se as famílias maxakalí, karajá, botocudo, bororo e jê. Dessa última, saem oito línguas e grupos de línguas: kaingang, apinayé, akwén, timbira, xokleng, suyá, kayapó e panará - um idioma falado por 174 índios e três antropólogos, um americano e dois ingleses. Só agora um linguista brasileira, Luciana Dourado, da Universidade de Brasília, começou a estudá-lo.

Proposta de Diretrizes para a Regulamentação dos Procedimentos de Consulta Livre, Prévia e Informada aos Povos Indígenas no Brasil.

A Rede de Cooperação Alternativa (RCA), juntamente com a Associação Brasileira  de Antropologia (ABA), o Ministério Público Federal (MPF), o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e o Centro de Pesquisa e Pós-Graduação sobre as Américas (Ceppac), da Universidade de Brasília, promoveram, entre os dias 09 e 12 de outubro de 2011, uma oficina- seminário sobre a aplicação do Direito de Consulta Livre, Prévia e Informada (CLPI) dos Povos Indígenas e comunidades tradicionais no Brasil.
Congregando cerca de 40 participantes, entre representantes das organizações indígenas Atix, Apina, Arpinsul, CIR, Foirn, Hutukara, Opiac, Oprimt, Wyty-Catë, Comissão Yvy Rupa, bem como das organizações indigenistas CPI-AC, CTI, Iepé, Inesc, ISA e especialistas na matéria, o objetivo do evento foi debater o conteúdo e o alcance do Direito de Consulta Livre, Prévia e Informada (CLPI) dos Povos Indígenas previsto na legislação nacional e internacional, assim como trabalhar na elaboração de uma proposta preliminar de diretrizes que orientem a regulamentação e aplicação deste direito no Brasil.
Para as organizações participantes do evento o Direito de Consulta Livre, Prévia e Informada é compreendido como um instrumento de diálogo entre os povos indígenas e o Estado, que visa garantir o direito à participação efetiva no processo de tomada de decisões legislativas e administrativas que envolvam direitos coletivos dos povos indígenas. Portanto, sua natureza é estritamente instrumental e acessória ao conjunto de direitos substantivos reconhecidos aos povos indígenas, tanto na Constituição Federal como nas demais normas e instrumentos nacionais e internacionais sobre os povos indígenas vigentes no país.
A seguir, são apresentadas recomendações referentes ao processo de regulamentação do Direito de Consulta Livre, Prévia e Informada, bem como ao conteúdo e alcance do mesmo, debatidos e deliberados no evento.

I. RECOMENDAÇÕES SOBRE O PROCESSO DE REGULAMENTAÇÃO DO DIREITO DE CONSULTA PRÉVIA:
* A regulamentação deste direito deverá ser feita por meio de um processo amplamente participativo, segundo regras e procedimentos previamente acordados com os próprios povos indígenas e suas organizações representativas.
* O Estado deverá garantir aos povos indígenas temo suficiente para a discussão, reflexão e deliberação sobre o assunto.
* O Estado deverá garantir informação suficiente, adequada e oportuna para o processo de consulta.
* O Estado deverá garantir os recursos necessários para o processo de consulta.
* O Estado não deve fracionar a regulamentação setorial dos procedimentos de consulta.
Recomenda-se a unificação de procedimentos em um instrumento para medidas administrativas e outro para medidas legislativas.

II. RECOMENDAÇÃO SOBRE O CONTEÚDO DA REGULAMENTAÇÃO DO DIREITO DE CONSULTA PRÉVIA:
II.1. Com relação às decisões que devem ser consultadas:
* Todas aquelas decisões, administrativas e legislativas, que afetem os direitos coletivos dos povos indígenas, independentemente deles estarem dentro oou fora das terras indígenas.
* Decisões administrativas de nível federal, municipal e estadual que afetem os direitos coletivos dos povos indígenas.
* Decisões administrativas de caráter geral para toda a população, mas que afetem especificamente direitos coletivos dos povos indígenas.
* Planos, programas e projetos de desenvolvimento nacional, regional, estadual e municipal que afetem povos indígenas.
* Projetos de Decretos Legislativos que autorizam a exploração de recursos hídricos e minerais em determinadas terras indígenas ou em seu entorno.
* Decisões legislativas das Assembléias Legislativas e Câmaras Municipais de caráter geral que afetem os direitos dos povos indígenas.
* As decisões legislativas e administrativas sobre políticas transfronteiriças que afetem direitos coletivos dos povos indígenas de fronteira deverão ser consultadas.
* O poder executivo deve consultar os povos indígenas sobre suas iniciativas legislativas, bem como sobre medidas provisórias que afetem direitos coletivos dos povos indígenas.
 II.2. Com relação ao momento oportuno de realizar a consulta:
* O processo de consulta deve ser prévio à decisão administrativa ou legislativa emitida pelo Estado ainda no início dos processos de planejamento.
* O processo de consulta deve ser iniciado pelo Estado, e os povos indígenas têm o direito de solicitar sua realização.
* No caso de medidas legislativas, o processo de consulta deve ocorrer antes da aprovação do relatório final na Câmara dos Deputados e no Senado Federal.
* O Congresso Nacional deve consultar os povos indígenas afetados antes de emitir autorização para aproveitamento de recursos hídricos ou exploração mineral em terras indígenas. Tais autorizações não podem ser condicionadas à realização posterior de consultas com os povos indígenas.
II.3. Com relação a quem deve realizar a consulta:
* O processo de consulta deve ser feito pelo órgão do Estado com competência para decidir sobre a matéria objeto de consulta, bem seja o Congresso Nacional para o caso de decisões legislativas ou, órgãos do poder executivo, em todos os níveis, para os casos de decisões administrativas.
* O Estado deve garantir uma interlocução articulada e coordenada com os povos indígenas envolvendo todos os setores responsáveis pelo conteúdo e execução das decisões objeto da consulta.
* Durante os processos de consulta, além dos povos indígenas e o Estado deve participar um terceiro ator responsável por velar pelo cumprimento das leis. Recomenda-se que o Ministério Público Federal participe de todos os processos de consulta.
II.4. Com relação a quem deve ser consultado:
* Os sujeitos  do direito de consulta são os povos indígenas diretamente afetados.
* Os processos de consulta deverão ser realizados com as comunidades indígenas e suas organizações representativas, dependendo do escopo da medida objeto da consulta.
* Quando determinada decisão impacta mais de um povo ou comunidade, o processo de consulta deverá ser executado de forma conjunta por todos os povos e comunidades envolvidas.
* No processo de consulta, a Funai não pode tomar decisões em nome dos povos indígenas.
II.5. Com relação aos procedimentos dos processos de consulta:
* A consulta deve ser compreendida como um processo de várias etapas a serem definidas conjuntamente entre o Estado e os povos indígenas, dependendo do escopo e do conteúdo da medida objeto de consulta.
* As regras do processo de consulta devem ser definidas conjuntamente entre os povos indígenas e o Estado. Tais regras acordadas serão expressas em um Plano de Consulta, que conterá como mínimo:
- Os interlocutores por parte do Estado e dos povos indígenas.
- Os procedimentos adequados (prazo, assessoria técnica e modos de tomada de decisão).
- O cronograma, que deve contemplar o tempo do processo de compreensão e deliberação interna dos povos indígenas.
- A forma em que a informação será disponibilizada, bem como os recursos necessários para sua compreensão.
- Tradução nas línguas dos povos indígenas envolvidos no processo, quando houver necessidade.
- A informação completa, independente e oportuna.
* Informação prévia, em tempo adequado, e que seja garantida as condições para que as comunidades recebam informação de fontes independentes, com assessoria técnica e jurídica escolhida pelos próprios povos indígenas.
* A consulta prévia é específica sobre cada decisão administrativa ou legislativa e não se confunde com os espaços de participação cidadã e de controle social dos quais participam representantes dos povos indígenas.
* Todo o processo de consulta deverá estar devidamente documentado, disponível a todos os participantes e amplamente divulgado.
II.6. Sobre os efeitos jurídicos do processo de consulta:
* A consulta tem como objetivo chegar a um acordo ou obter o consentimento dos povos indígenas. Todo acordo produto do processo de consulta é vinculante.
* Nos casos de não acordo, o Estado deverá incorporar na motivação da decisão as razões técnicas e políticas pelas quais não há acordo com os povos indígenas.
* Os resultados e produtos das consultas devem estar refletidos na decisão final, sendo este elemento o principal para qualificar o processo de consulta prévia e diferenciá-lo de qualquer outro tipo de reunião.

PRINCÍPIOS E REGRAS GERAIS DE APLICAÇÃO

DIÁLOGO: A Consulta Livre, Prévia e Informada deve ser entendida como um processo e não como um evento, como um instrumento de diálogo entre o Estado e os povos indígenas.

FLEXIBILLIDADE: A aplicação deste direito deve atender a diversidade étnica existente no país, sendo flexível tanto nos procedimentos para cada consulta como no tempo necessário para sua execução.

BOA FÉ: Os processos de consulta devem ser realizados de boa fé, com apresentação de informação verídica, completa e oportuna. A boa fé deve também se manifestar na vontade do Estado de chegar a um acordo ou obter o consentimento dos povos indígenas.

TRANSPARENTE: Os processos de consulta devem ser públicos e divulgados de forma adequada aos povos indígenas.

LIVRE: Os processos de consulta devem ser livres de qualquer tipo de pressão política, econômica ou moral.

REPRESENTATIVIDADE INDÍGENA: Os processos de consulta devem respeitar as formas próprias de representação e de tomada de decisão dos povos indígenas participantes da consulta.

VINCULANTE: O resultado do processo de consulta deve incorporar e respeitar a decisão dos povos indígenas.

RESPONSABILIDADE PÚBLICA: Os processos de consultas somente deverão ser realizados pelo Estado. O Estado deve garantir os recursos necessários para a execução de todo o processo, incluída a articulação e a preparação dos povos indígenas.

PARTICIPATIVO: As regras do processo de consulta deverão ser decididas conjuntamente entre os povos indígenas afetados pelo Estado.