terça-feira, 18 de setembro de 2012

Índios Gigantes: uma história com um grande final feliz

Matéria publicada na Superinteressante n. 12, Ano 10, dezembro de 1996.

Primeiro, eles assombraram o país: eram os índios mais altos já encontrados. Depois,  foram removidos, exilados, humilhados e quase extintos. Mas se reergueram, reagiram e recuperaram suas terras. Essa é a saga do Panarás - os gigantes da vontade.

Por Ricardo Arnt, de São José do Xingu.


Eles se esconderam durante 200 anos no fundo da floresta do norte do Mato Grosso. Tão desconhecidos que nem nome tinham. Eram chamados de Krenacore, Kreen-akarore ou Krenhakore. Eram uma lenda: "os índios gigantes".
Em 1970, o governo mandou construir a estrada Cuiabá- Santarém em cima da terra deles, na bacia do Rio Peixoto de Azevedo. Uma expedição chefiada pelos irmãos Orlando e Cláudio Villas Boas partiu para encontrá-los. Mas os vírus do homem branco chegaram primeiro. Rendidos pela febre e pela morte, afinal se deixaram vacinar. Descobriu-se, então, que poucos eram altos. Não eram gigantes como o mito fazia supor. E tinham nome: chamavam-se Panarás.
A abertura da estrada ao tráfego, em 1974, completou o estrago. De 400 sobraram apenas 79. Por isso, em 1975, a Fundação Nacional do Índio (Funai) levou todos os sobreviventes, de avião, para o Parque do Xingu. Foi uma viagem incrível. Em um instante, eles foram para outro mundo. Lá, perambularam feito fantasmas, durante anos, trocando de aldeia sem parar.
Esta seria mais uma história triste, igual à de muitos outros índios brasileiros, mas os Panarás se reergueram e se recuperaram. Retornaram ao território original. E acabaram convencendo a Funai a apoiá-los. Hoje, vinte anos depois, estão voltando pra casa, felizes. Quem disse que não eram gigantes?

UMA VIAGEM POR CIMA DAS NUVENS

Nos anos 70, a presença de índios gigantes e misteriosos no caminho do progresso da estrada Cuiabá- Santarém hipnotizou o Brasil. Parecia que a história ia colidir com a pré-história. A expedição para contatá-los foi a mais fotografada da antropologia brasileira. A imprensa acompanhou tudo. O poeta Carlos Drummond de Andrade fez um poema para eles e até o beatle Paul McCartney compôs uma música chamada Kreen-Akrore.
Os Panarás são os últimos descendentes dos Kayapós do sul, grupo nômade que falava uma língua da família Jê e habitava o Brasil Central, no século XVIII, do norte de São Paulo até o Mato Grosso. Lutaram muito contra os portugueses. A descoberta de ouro em Goiás, em 1722, em seu território, empurrou os que restaram para as matas ao norte.
Segundo o antropólogo americano Stephan Schwartzman, "há evidência etno-histórica de que os Panarás ocupavam a bacia do Peixoto de Azevedo de 1920". Schwartzman, que acompanhou a SUPER nesta reportagem, fez tese de doutorado sobre o grupo na Universidade de Chicago e é um dos três não-índios que falam a língua Panará. Os outros dois são antropólogos ingleses, Nenhum brasileiro.
A ferocidade dos gigantes era lendária. Quem mais espalhou notícias sobre eles foram os inimigos Txucarramães - em parte para aumentar a própria valentia. Orlando Villas Boas, hoje com 82 anos, conta que "em 1950, os Kayabis também falavam deles. Diziam que eram muito grandes. E morriam de medo". De avião, os indigenistas viam as aldeias no Peixoto de Azevedo, mas acharam melhor não tentar o contato. Em 1961, o geógrafo inglês Richard Mason foi morto ao entrar nos domínios dos Panarás.

TEMPO DE MORTE

Nos anos 60, duas expedições tentaram encontrá-los, em 1967 e 1968. Fracassaram. Mas em 1970, o governo anunciou o Plano de Integração Nacional e a construção das estradas Transamazônica, Manaus -  Boa Vista e Cuiabá - Santarém. A Funai recebeu a missão de 'pacificar' trinta tribos e os Villas Boas - que haviam criado o Parque Indígena do Xingu, em 1961, reunindo quinze tribos - foram chamados para 'atrair' os gigantes.
A estrada estava chegando às aldeias, em 1972, quando a terceira expedição partiu da Base Aérea do Cachimbo, no sul do Pará. Eram 28 pessoas. Caminharam, quatro meses, até atingir o Peixoto de Azevedo, onde fizeram uma pista de pouso. Queriam convencer os Panarás a não atacar os operários que viriam em seguida.
Mas, em julho de 1972, 2.070 trabalhadores e 347 veículos já estavam na região. Os índios espionavam e fugiam. Em maio, flecharam um trabalhador. Foi aí que os vírus atingiram as aldeias, como um raio seco. Os Panarás começaram a morrer, com tosse, dor pulmonar e febre. "Iam caindo e morrendo", disse o chefe Aké Panará à SUPER. "Morreu todo mundo pelo caminho".

DEPONDO ARMAS

Em fevereiro de 1973, os índios, doentes, aceitaram o contato. Um grupo se aproximou do acampamento dos Villas Boas pela margem oposta do Peixoto de Azevedo. Cláudio entrou numa canoa, atravessou o rio, discursou em vários dialetos e ofereceu um facão. Um guerreiro adiantou-se e aceitou o que a mão branca estendia. Foi o fim da guerra. Logo mais, a Funai seria recebida nas aldeias.
Antes de retornar ao Xingu, em abril de 1973, Cláudio e Orlando contaram 140 Panarás, mas não sabiam quantos haviam morrido. Constataram que a maioria tinah baixa estatura. Mas havia, sim, um grupo bem alto. "Tinha uns oito de mais de 2 metros", assegura Orlando. "Mas morreram logo depois da atração".
A Funai mandou funcionários para a área, mas o 'contato' havia fugido do controle - se é que em algum momento esteve controlado. Com a tribo dizimada pela doença, os índios começaram a se acusar de feitiçaria e a se matarem uns aos outros. Em dezembro de 1974, a estrada foi aberta e tudo piorou. Caminhoneiros, garimpeiros, turistas chegavam. Em pouco tempo, os lendários gigantes se transformaram em mendigos.
A remoção para o Xingu, então, se impôs como saída. "Vimos nos jornais a foto de uma índia mendigando", lembra Orlando. "Ficamos desesperados. Metade já havia morrido. Nós fomos lá e organizamos a transferência. Foi um ato de salvação".
Assim, em janeiro de 1975, um C-47 da FAB levou 79 sobreviventes trôpegos, em duas viagens, para o Parque do Xingu. Foi assustador. Eles mal entendiam o que estava acontecendo. "A gente ficou se abraçando, chorando de medo", conta Yokré Panará. "Eu tremia, apavorado", diz Teseya Panará. A viagem no céu iniciou vinte anos de exílio.

...E CASA DOS HOMENS FOI REERGUIDA

Em dois anos, os Panarás se recuperaram. Quando chegaram ao Xingu, em 1975, uma equipe da Escola Paulista de Medicina, chefiada por Roberto Baruzzi, examinou-os um a um. "Eles estavam desnutridos, anêmicos, gripados e apáticos", disse Baruzzi à SUPER. A altura média dos homens era 1,68 metros, padrão do grupo Jê. Havia alguns de 1,80 metros, mas nenhum beirando 2 metros. É intrigante. Todos os adultos Panarás com quem a SUPER conversou são enfáticos sobre a existência de parentes "muuuuito altos" no passado. Eles não usam metro, mas sabem sinalizar, perfeitamente, 2 metros de altura. Teseya Panará chegou a fazer uma lista de quatorze gigantes que conheceu.
Para o geneticista Francisco Salzano, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, não se trata de um fenômeno. "Numa população, podem surgir indivíduos excepcionalmente altos devido a combinações genéticas específicas e influências ambientais favoráveis, como boa alimentação", explica. "A expressão individual, o fenótipo, varia muito do conjunto gênico, o genótipo. É pena que a Genética não possa estudar esses casos. Mas não há documentação", lamenta Salzano. As fotos dos gigantes (publicadas nesta reportagem), o testemunho de Orlando Villas Boas e dos Panarás é o que resta.
Mas intrigante, mesmo, era o Xingu para os Panarás: outro mundo. O rio era muito mais largo do que os riachos da bacia do Peixoto de Azevedo. Pescar, só de canoa, mas eles nunca tinham visto uma. Quase não havia caça e o solo era pobre. Por isso, mudaram muito de aldeia. Chegaram a aceitar o convite dos ex-inimigos Txucarramães, cujo chefe, Raoni, estava só de olho nas mulheres. Seis meses depois, quando desistiram de ser inquilinos da aldeia de Raoni, deixaram sete moças. Com a auto-estima a zero, abandonaram costumes e rituais. Mais gente morreu. Em julho de 1976, eram só 64. Passavam horas parados, prostrados.

READAPTAÇÃO

As coisas só mudaram quando ganharam uma aldeia separada, com assistência médica regular. "Aí a saúde melhorou", conta Schwartzman. "Eles fizeram roças e ressurgiram lideranças, ritos, danças e canções. Os homens aprenderam a pescar com linhas e a fazer canoas".
No final de 1976, os bebês recomeçaram a nascer. Em 1980, já eram 84. Em 1989, a tribo fixou-se, afinal, na aldeia do Rio Arraias. Em 1992, eram 135. Schwartzman continua: "Quando fui pesquisá-los, em 1980, diziam que a aldeia tradicional tinha uma Casa dos Homens, no centro da praça. E que quando tivessem mais meninos a reconstruiriam. Em 1991, voltei ao Xingu e lá estava ela, de pé".

UM LUGAR ONDE NÃO SE FAZ O QUE NÃO SE QUER

Retomar o rio Peixoto de Azevedo passou a ser uma idéia fixa desde que os Panarás voltaram a sonhar. No Peixoto eles tinham castanha do pará, açaí, cacau, cupuaçu, buriti, batata, cará, banana, milho, mandioca, abóbora e algodão. Havia muito peixe e caça, queixada, macaco, jabuti, jacu e mutum. E mel.
É claro que evoluíram no Parque. Trocaram o machado de pedra pelo de aço, aprenderam a fazer canoa, a atirar de espingarda, a pescar com anzol e linha. Habituaram-se à faca, à pilha e à gasolina. Vestiram roupas de branco e começaram a falar português. Açúcar, antibióticos e outras novidades deixaram muitos banguelas.
Mas jamais perderam a identidade. E mantiveram o bom humor. Banguelas ou não, riem muito. Os homens adoram piadas, sobretudo as sexuais. Coçam 'as partes' abertamente, adoram palavrões e divertem-se soltando puns. Não existe privacidade. Todos sabem tudo de todos.
A higiene pode chocar não-índios. Os Panarás eram nômades. Eles cospem e jogam tudo no chão. As crianças rolam, nuas, 'à milanesa', na terra. E os bebês brincam com ratinhos. Em compensação, assim como não têm horário pra comer, banham-se a toda hora, no rio. Para eles, os brancos é que têm pouco asseio: a prova é que têm banheiro dentro de casa e usam a mesma privada. Para um Panará, há poucas idéias piores do que um banheiro público. Além disso, os brancos vão a churrascarias e comem carne sangrando - como bichos.

TOLERÂNCIA

A economia da tribo não gera excedente. Eles não produzem a mais, para trocar ou vender. "E ninguém faz o que não quer", diz Schwartzman. "O poder é consensual. O chefe atende a demandas. Não há coerção. Mas há limites: quando alguém é considerado anti-social e feiticeiro, é morto".
As casas pertencem às mulheres, que vivem com o marido, a mãe, os filhos pequenos, as filhas e os maridos das filhas. Os filhos, quando se casam, vão morar na aloca da esposa. Se o casamento monogâmico acaba (e acaba com frequência), o homem é que sai. É comum casaram-se cinco vezes. E há adultérios, sim, apesar de temidos pelo escândalo e pela violência que podem produzir.
"Se você buscar o que para nós parece religião, não acha", diz Schwartzman. Eles acreditam que a aldeia dos mortos fica sob a terra e que eles, de vez em quando, 'puxam' os vivos. Mas também há mortos no céu. As estrelas são Panarás que se foram: as pequenas, os homens; as grandes, as mulheres. Para eles, um dia, uma Panará pariu uma sucuri, que foi esquartejada pelo marido. Dos pedacinhos nasceram os brancos. É por isso que tantos brancos no mundo.

O ÊXODO PELO AVESSO

"É kranquilo!', diz Kreton, confundindo os 'k' da língua Panará: "Aqui em Nacypotire vai ser kranquilo". Kreton, Kokè e Akè foram os primeiros a constatar, de avião, em 1991, que havia um pedaço intacto nas antigas terras, nas cabeceiras do rio Iriri. Eram uns 500.000 hectares, a quinta parte dos 2,5 milhões que tinham antigamente. O restante fora ocupado por 23 cidades. O Peixoto de Azevedo, coitado, virou um lamaçal.
Primeiro, os Panarás pediram ajuda à Funai e foram a Matupá de ônibus. Lá, alugaram um avião e sobrevoaram o rio. Foi um choque. Estava quase tudo arrasado. Foram a Brasília, conversar com o governo. Com a ajuda de organizações de apoio aos índios, como o Instituto Socioambiental, a Fundação Mata Virgem e o Fundo de Defesa do Ambiente, contrataram advogados.
Em 1994, deram um passo gigantesco: doze guerreiros voltaram ao Iriri e construíram a primeira maloca da aldeia de Nacypotire. Em dezembro, a Funai reconheceu a Área Indígena Panará. E, no último dia 1º de novembro, o Ministério da Justiça decretou a posse permanente dos Panará sobre 495.000 hectares de terra.
Hoje, as famílias estão voltando. Nacypotire já tem dez casas.  A SUPER contou 75 Panarás no Rio Iriri e 99 no Rio Arraias, no Xingu, esperando para se mudar. Mas a aldeia nova precisa de uma boa roça, para sustentar todos, o que só poderá ser testado na próxima estação seca, em maio de 1997. Ninguém quer ficar no Xingu. Orlando Villas Boas, que os levou para lá, sabe porque: "A cabeceira do Iriri é a terra deles. É um pedaço longínquo que pode ser preservado. Vale a pena voltar.

UMA LÍNGUA FALADA POR 177 PESSOAS

O Panará tem afinidade com línguas Kayapós, mas um Panará e um Kayapó não se entendem, assim como não se entendem um português e um italiano, embora pertençam à mesma família linguística (românica).
Joseph Grin=nberg, da Universidade de Stanford, na Califórnia, diz que todas as línguas nativas americanas provêm de três raízes: o esquimó (norte do Canadá), o nadené (noroeste da América) e o ameríndio (Américas Central e do Sul). "A tese é aceita, mas não foi demonstrada", diz Aryon Dall'Ígna Rodrigues, da Universidade de Brasília. "Talvez nem seja demonstrável".
Mais de 90% das línguas indígenas brasileiras nunca foram descritas. Admite-se que o ameríndio gerou uma árvore com dois grandes troncos, como o tukano, o nambikwara, o aruák e o yanomami. E ainda há línguas isoladas, como o trumái, o tikúna e o irantxê. Uma babel, enfim.
No descobrimento, eram 1200 línguas. Hoje, restam 177. O tronco tupi, com as famílias tupi-guarani (29 línguas) e karib (21 línguas) é o mais importante. No tronco macro-jê destacam-se as famílias maxakalí, karajá, botocudo, bororo e jê. Dessa última, saem oito línguas e grupos de línguas: kaingang, apinayé, akwén, timbira, xokleng, suyá, kayapó e panará - um idioma falado por 174 índios e três antropólogos, um americano e dois ingleses. Só agora um linguista brasileira, Luciana Dourado, da Universidade de Brasília, começou a estudá-lo.

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