domingo, 21 de outubro de 2012

Qualificação do professor é um desafio

Matéria publicada na ZH Escola, segunda feira, 13 de janeiro de 2003, p. 4

Silvana de Castro
Casa ZH / Missões


Ocorreu em 2002 o primeiro concurso público para educadores que necessariamente devem ser índios e dominar a língua -  mãe do grupo.

De acordo com a responsável pelo Setor de Educação da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), Iara Maria Martins Alvarez, as crianças indígenas são mais dóceis e calmas na escola por questões culturais.
- Os índios dão muito valor às crianças e aos velhos, o respeito é grande. Dificilmente se vê uma criança indígena ser repreendida ou levar palmadas. Isso reflete em seu comportamento na sala de aula e no convívio social.
Aparentemente, não fosse os olhos puxados, o jeito desconfiado dos alunos e as aulas de caingangue e cultura indígena, a escola é como as de fora da aldeia, com português, matemática, estudos sociais, geografia e educação física.
No futuro, todas as aulas deverão ser ministradas em caingangue, só por professores índios, como forma de conservação da visão de mundo indígena, conforme a responsável pelo Setor de Educação da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), Iara Maria Martins Alvarez.
Para que o idioma permeie as disciplinas, é preciso resolver um problema antigo: qualificar o professor que conhece a língua caingangue, mas que muitas vezes não tem o Magistério, e ensiná-la àquele professor indígena qualificado, mas desconhecedor da língua - mãe.
Com esse objetivo, está sendo desenvolvido desde o ano passado o projeto Vãfy, que corresponde a um Magistério em nível de Ensino Médio. Com duração de cinco anos, o projeto conta com a participação de docentes especializados em cultura indígena da Unijuí e da Universidade de Passo Fundo.
- A língua é o maior símbolo cultural. Não deve ser utilizada como apoio na tradução de uma língua para outra simplesmente. O ensino do caingangue nas escolas indígenas tem um significado muito maior do que o ensino de uma segunda língua. É o ensino e a preservação de suas crenças, seus mitos, rituais e forma de ver o mundo - diz Iara.
O aprendizado indígena sai prejudicado com a falta de formação de professores. Segundo Iara, contribui também com as dificuldades na sala de aula a inexistência de material didático e pedagógico direcionado aos estudantes indígenas.  

FALTA DE MATERIAL DIDÁTICO E PEDAGÓGICO DIRECIONADO DIFICULTA TRABALHO EM AULA

Pouco questionamento nas aulas

Os alunos de Elvis Ribeiro, 22 anos, não têm o costume de expor dúvidas e apresentam dificuldades ao interpretar textos. Para ele, o pouco interesse dos pais pelo aprendizado dos filhos é um dos motivos para o rendimento apresentado. O capitão da aldeia Estiva, na Reserva da Guarita, em Redentora, onde a escola está localizada, Antonio Sales, 47 anos, concorda com o professor.
- As crianças só estudam quando estão no colégio. Em casa, os mais velhos trabalham na lavoura e os mais novos cuidam dos irmãos menores. Os pais não incentivam o estudo dos filhos.
Na sala em frente a de Ribeiro, enquanto os alunos terminam o trabalho sobre os meios de transportes dos indígenas, o professor Lairton Cipriano, também estudante de Sociologia, cobrava maior participação das crianças.
- A maioria dos alunos não interpreta as coisas, só aceita tudo, não questiona. É decorrência do processo de dominação. Quero mudar isso - diz Cipriano.
Um dos mais desinibidos estudantes e adiantado, Vanderlei Camilo, 10 anos, é participativo e daqueles conhecidos como o animador da turma.
- Gosto de estudar matemática, escrever sobre os transportes - conta o menino, que frequentemente viaja com os pais para vender artesanato.

A ESCOLA INDÍGENA:

* Historicamente, a concepção de escola indígena que se tem é a de um lugar que prepara os índios para a sociedade branca e ocidental - do que se pressupõe que eles são inadequados e precisam ser integrados.

* A integração é necessária, essa idéia não foi abandonada, mas está sendo remodelada. Deve estar baseada no respeito à cultura indígena. Caso contrário, a inclusão pretendida (a que precisava adequar o índio aos modos e modelos brancos) na verdade excluía.

* Atualmente, se trabalha para que a educação indígena se volte para eles, para a cultura dos índios, numa escola coordenada por eles mesmos. Daí a necessidade de que os professores sejam índios e da obrigatoriedade do ensino bilíngue. O primeiro concurso para professores indígenas foi realizado no ano passado. Para ser professor, precisa ser índio e saber a língua - mãe.

* Nos anos 70 e 80, universidades, Ongs e setores da Igreja começaram uma movimentação de reconhecimento da cultura indígena. Essa ação só agora, início de século 21, começa a se refletir nas salas de aula de aldeias. Incipientes ainda, as mudanças não estão definidas, há apontamentos. Nem mesmo os índios sabem exatamente como tem de ser a sua escola, mas o espírito é esse: ela tem de ser deles.

* A estrutura e o funcionamento da escola estão mudando. Entre as práticas que foram incorporadas, o ensino bilíngue e a força dos valores e da cultura indígena nos conteúdos. A troca do nome da escola, atitude que parece singela, foi importante: de nomes de brancos que não dizem nada sobre a história deles para a de índios que representam a história do povo.

* A lei garante inclusive que escolas indígenas se diferenciam entre si, adequando-se a cada grupo que serve, porque generalizar sob o termo índios é apagar diferenças profundas que, no caso do Rio Grande do Sul, se dão ente guaranis e caingangues.

* A maioria das escolas é seriada, indo até a 4ª série do Ensino Fundamental. Aqueles alunos que desejam continuar os estudos, precisam buscar vagas em outras escolas.

* Os grupos indígenas estão baseados essencialmente em relações comunitárias. Isso se reflete na escola, que, em geral, se transforma nu lugar bastante respeitado e do qual participam todos (principalmente entre os caingangues)

Fonte: Maria Aparecida Bergamaschi, doutoranda  em projeto de pesquisa sobre educação escolar indígena e professora de história da educação da Faculdade de Educação da Universidade  Federal do Rio Grande do Sul.

Como funciona uma escola indígena?

Matéria publicada no ZH Escola, Porto Alegre, segunda feira, 13 de janeiro de 2003, nº 47

Silvana de Castro
Casa Zero Hora / Missões



Há aulas de português, matemática, ciências, estudos sociais mas, fundamentalmente, de valorização da própria cultura, a estrutura ainda é convencional, mas a intenção é adaptá-la às crianças e não ao contrário, como caracterizou a educação indígena até aqui.

Enquanto escreve no quadro um texto em português sobre a história de Rita Magrela, o professor de uma escola indígena da Reserva da Guarita, em Redentora, é interrompido por uma voz quase inaudível. É uma aluna da 4ª série. Ele, já acostumado com a timidez, se agacha para ouvi-la. A menina queria um lápis, conforme sussurrou no seu ouvido, em meio ao silêncio da turma.
Na Escola Estadual Indígena de Ensino Fundamental Toldo Campinas, é raro ver professores chamando a atenção das crianças. Os alunos quase não fazem perguntas também.
- Eles são sempre tímidos. Tenho de perguntar de classe em classe se entenderam - explica o professor de português, matemática e estudos sociais Elvis Ribeiro, 22 anos, também indígena.
A leitura coletiva e em voz alta de frases, comuns no Ensino Fundamental, precisa ser repetida mais de uma vez pelo professor. Com a presença de estranhos, os alunos emudecem mais ainda, a não ser que a aula seja de caingangue, língua materna da maioria dos moradores da área indígena. Como se falassem em código, as crianças se transformam e, visivelmente à vontade, se tornam brincalhonas e participativas. Dão risada e fazem perguntas à professora Tatiana Emílio, que, às vezes, precisa pedir silêncio. Respondem as questões que copiaram do quadro em seus cadernos, em caingangue, e vão até Tatiana para conferir se a lição está correta.
Com os pés quase sempre descalços ou com chinelo de dedo, as crianças bem antes do início da aula estão rondando o colégio. A chuva, apesar do barro que se forma no acesso à escola, não é motivo para a ausência. O vínculo criado com o estabelecimento é forte. Nos cinco anos em que a diretora Dalva Gonzatto está na Toldo Campinas, viu apenas três crianças chorarem quando tiveram  o primeiro contato com a classe.

NÚMEROS:
No Rio Grande do Sul, há 39 escolas dentro de Terras Indígenas, todos de Ensino Fundamental, onde estudam 4.500 alunos, com predominância de caingangues. Somente em três áreas - Cacique Doble, Votouro e Guarita - há estabelecimentos de ensino a guaranis.

O tema no Fórum Mundial de Educação:

 A educação indígena é tema de uma das oficinas programadas para o primeiro dia de atividades do Fórum Mundial de Educação, que será aberto no próximo domingo, em Porto Alegre. Destaques da programação, principalmente convidados e um pouco das idéias que serão discutidas durante as conferências do evento estão na página 5 desta edição.
Em tese os primeiros alunos do Brasil, graças ao movimento missioneiro dos jesuítas em terras recém - conhecidas, os índios estão há bem pouco tempo começando a se apropriar de sua escola. Essa é a perspectiva que deve nortear os debates sobre Educação Indígena, conforme Maria Aparecida Bergamaschi, doutoranda em projeto de pesquisa sobre educação escolar indígena e professora de história da educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul: entender a escola indígena não como uma instituição DE índios, mas PARA índios.
Legalmente, há apenas 10 anos a secretarias de educação passaram a ter ingerência sobre essas escolas. No Estado, um pouco antes: em meados da década de 80 já havia iniciativas nesse sentido. O tema é ainda mais recente como foco de estudos acadêmicos, e a inclusão dele num evento como o Fórum Mundial confirma a urgência e a necessidade de envolver toda a sociedade nisso.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

MULTIPLICANDO AS TRANSFORMAÇÕES

Matéria publicada no Jornal Universitário - UFSC de Agosto de 2011, n. 419.

A solenidade foi ao encontro do que Gersen Baniwa defende: que o curso transforma seus alunos, mas também a sociedade e a Universidade. O hino nacional foi cantado por alunos Kaingang - metade entoado em sua língua nativa e a outra metade em português; houve espaço à homenagem a Natalino Crespo - feita de acordo com as tradições de sua tribo - companheiro que os incentivou a ingressar no curso e que faleceu no dia 2 de março, e o mestre de cerimônias não deixou de lado os caciques, quando registrou a presença das autoridades. Os detalhes demonstram as modificações sutis que a Universidade começa a ensaiar.
"A UFSC não estava e nem está preparada para recebê-los. Mas a forma de nos adequar é vivenciar e aprender, aperfeiçoar a cada dia", atesta o reitor. "Faço dois pedidos: que tenham compaixão com nossa instituição, perdoando nossas falhas, apesar de nossa boa vontade, e que exultem-se a si próprios, sendo bons alunos".
O curso, que vinha sendo gerado desde 2007 pela Comissão Interinstitucional para Educação Superior Indígena (CIESI, formada por integrantes da UFSC, organizações representantes dos povos indígenas e entidades parceiras), é um dos 26 do Brasil oferecido exclusivamente aos povos indígenas, e ajuda a somar cerca de oito mil índios no ensino superior. O presidente da FUNAI, Marcio Augusto Freitas Meira, explica que esse número só tende a crescer. "De acordo com o IBGE, temos hoje no país cerca de 817 mil índios". Isso significa que nos últimos dez anos a população indígena cresceu mais de 10%, número superior aos das pessoas que se declaram brancas, negras ou pardas. "Já escutei muito, também em Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul, a frase 'aqui não tem índio'. Por isso o curso vai além da educação: é também político. E essas novas gerações que fizerem o ensino superior poderão contribuir de forma mais efetiva com a construção do país", defende.

IGUALDADE NAS DIFERENÇAS

A professora Roselane Neckel ratifica a fala do presidente da FUNAI: "este momento significa a inclusão desses cidadãos na sociedade, a partir de seu ingresso na Universidade". A diretora do CFH vai além. "Em um país de diferenças tão profundas, não podemos tratar da mesma forma a todos, como se todos tivessem condições iguais", afirmou, mencionando em seguida as políticas públicas de permanência que a Universidade destina a alunos oriundos de escolas públicas, negros e indígenas, e reafirmando a disposição da UFSC em buscar meios de viabilizar, junto com a FUNAI, bolsas de estudos a esses alunos.
A equidade também foi mencionada por Analúcia, que ainda relembrou o saudoso professor Silvio Coelho dos Santos como orientador nos estudos das questões indígenas - homenageado anteriormente pela professora Dorothéa Darella, que o apontou como baluarte da antropologia em questões da área. "Quando trabalhei junto a tribos, contava-se nos dedos quantos falavam fluentemente o Kaingang.'Só se pegarmos à força esse indiozinhos', me diziam os mais velhos. Não existia a valorização dos índios e de sua cultura".
Hoje, de acordo com a procuradora, a Secretaria de Educação de SC já reconhece as diferenças e as estimula, orientando escolas e professores.
"Agora os alunos são liberados para os cultos junto com seus pajés, e há horários e merendas diferenciados", relata.

Pinturas, danças e direitos

Van (que em Xokleng significa taquara) tem sete anos e foi a atração da cerimônia para os fotógrafos. Com adereço de cisal no cabelo, pintura preta no rosto e usando saia de palha, balançava de tempos em tempos um chocalho de cabaça e passava com a mãe Walderes a música que cantaria junto ao grupo logo depois do evento.
Aos 26 anos, Walderes cria a sobrinha Van como filha, e a deixa com a mãe em José Boiteux, onde se localiza a tribo Laklãno, quando fica em Florianópolis para assistir às aulas. "Agora estou mais tranquila porque ela veio comigo para a apresentação, mas no primeiro mês foi mais difícil", relata.
Formada em Letras Português / Espanhol em uma universidade de Indaial, a Xokleng afirma que estudar, agora, está bem mais fácil. "Quando fiz a primeira faculdade, com minha mãe, havia vezes em que dormíamos no ponto de ônibus, e no outro dia tomávamos banho na própria universidade, porque não havia dinheiro para voltar pra casa. Aqui tem sido bem diferente", comemora.
Questionada sobre a diferença entre os Xokleng, Kaingang e Guarani, ela se vira e aponta: "Olha só a pintura. Cada um faz desenhos diferentes, e cada etnia possui suas próprias músicas e danças", explica, contando que sua tribo, que habita um terreno de cerca de 14 mil hectares, abriga as três etnias.
"Conheci professores de geografia e história que se referiam 'aos índios' apenas. Mas há grandes diferenças em relação aos costumes e tradições". Walderes pretende seguir Licenciatura em Humanidades, com ênfase em Direitos Indígenas. "Hoje estamos reivindicando a redemarcação de nossas terras. Quero lutar pelas causas indígenas".

domingo, 23 de setembro de 2012

Licenciatura Indígena pauta a diversidade

Matéria publicada no Jornal Universitário da UFSC,  nº 419 - Agosto de 2011.

Por Cláudia Schaun Reis
Jornalista na Agecom

As calças jeans e as camisetas convivem bem com a tinta preta no rosto. Os flashes insistentes incomodam alguns, e os sorrisos não saem tão fácil dos adultos, mas há crianças que se postam em frente às câmeras, e jovens de penteado moicano com máquinas e filmadoras nas mãos, como que a revidar fazendo suas próprias imagens. A segunda aula magna do curso de Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica da UFSC, que aconteceu no dia 11 de maio, reuniu reitor, pró-reitores, professores, estudantes, autoridades e os alunos de tribos Kaingang, Xokleng e Guarani, que retornaram à Universidade após dois meses nas comunidades colocando em prática o que aprenderam no curso em seus primeiros trinta dias.
A data teve programação durante todo o dia: de manhã, os alunos se reuniram com o presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Márcio Augusto Freitas Meira, quando reivindicaram bolsas de estudos para que possam permanecer na Universidade e concluir o curso, e também no hall da Reitoria foi aberta a exposição "Guarani, Kaingang e Xokleng - Atualidades e Memórias do Sul da Mata Atlântica".
A mesa de abertura contou com a presença do reitor Alvaro Prata; do presidente da Funai; da diretora do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFH) Roselane Neckel e a coordenadora do curso Ana Lúcia Vulfe Nötzold. A mesa de debates foi composta pela pesquisadora do Laboratório de Etnologia Indígena Maria Dorothea Darella; o coordenador-geral da Educação Escolar Indígena da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidades (SECAD) do MEC, Gersen José dos Santos Luciano (Baniwa), e a procuradora da República em Santa Catarina Analúcia de Andrade Hartmann.

"Não conheço povo indígena que, já tendo contato com a cultura do branco, abdique do direito de frequentar uma escola "
Gersen Baniwa

DOS ÍNDIOS PARA OS ÍNDIOS

Doutor em Antropologia Social, Gersen Baniwa faz parte da primeira leva de professores de dedicação exclusiva da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) que leciona nos cursos de Licenciatura Indígena em Políticas Educacionais e Desenvolvimento Comunitário e Formação de Professores Indígenas. O docente analisa a valorização de sua cultura. "Sempre me perguntei quantos eram os portugueses que desembarcaram no Brasil, e qual o número de indígenas que havia aqui para recebê-los, e a resposta me parece óbvia. Em nenhum momento os índios foram capazes de se articular para enfrentar o inimigo comum. E nisso se passaram cinco séculos. Apenas na década de 1970 se iniciaram as primeiras reações mais conscientes dentro dessa relação histórica de dominação". "Nenhuma política", continua, "tem sido implantada porque o Brasil mudou sua percepção de mundo, e sim porque os povos indígenas tomaram outra atitude, e o ensino superior faz parte dessa reação".
Gersen confessa que o magistério voltado ao índio está em processo de construção. "Ainda não tenho clareza do que fazer em sala de aula. A escola foi inventada pelo mundo branco para atender às necessidades de industrialização e mercantilização, e talvez seja um erro adaptá-la às demandas indígenas".
Há menos de uma década atuando como categoria, os professores indígenas talvez busquem o meio termo. "A responsabilidade é grande. Como se define uma escola intercultural? Tem povos que nos cobram o ensino da língua nativa, mas não conheço índio que não queira aprender sobre as novas tecnologias. E será que ensinar português vai ser bom para esses povos? Tem quem ache que o índio que fala bem o português já não é mais índio", problematiza.
O duelo entre o novo e o antigo, no entanto, parece se desfazer a partir da visão do professor. "Há pessoas acreditando que a tradição e a modernidade são incompatíveis. Isso é um problema para os pensadores, porque os índios já resolveram a questão. Para eles, o caminho é a complementaridade: não conheço povo indígena que, já tendo contato com a cultura do homem branco, abdique do direito de frequentar uma escola".
Gersen ainda enfatizou o caráter social que a educação tem para sua gente. "Os índios são pragmáticos: quem vai à escola deve voltar sabendo fazer sabão, anzol, construir roupas, senão significa que não aprendeu direito. O estudo tem como objetivo melhorar a comunidade". 

sábado, 22 de setembro de 2012

Na terra do agronegócio, Povo Guarani celebra reunião

Matéria publicada no jornal Brasil de Fato, São Paulo, 18 a 24 de fevereiro de 2010.

Um encontro histórico reuniu indígenas Guarani de Paraguai, Argentina, Bolívia e Brasil em Diamante D'Oeste (PR). Entre os dias 2 e 5, eles puderam partilhar suas culturas sob a mesma língua, além de dialogar com representantes governamentais do Brasil e Paraguai, a quem entregaram suas reivindicações. "Acima de tudo, é maravilhoso, muito bonito esse reencontro", celebrou Williams Cerezo Villa, representante dos Guarani da região de Chuquisaca, na Bolívia. (p. 07)


ENCONTRO GUARANI: ENTRE A BELEZA DA REUNIÃO E AS CONTRADIÇÕES DA POLÍTICA.

MOVIMENTO INDÍGENA - Em evento com lideranças vindas de Argentina, Bolívia, Paraguai e diferentes regiões do Brasil, o Guarani puderam dialogar pela primeira vez, de forma conjunta, com representantes dos estados.

Por Spensy Pimentel
Diamante D'Oeste (PR)

Fica desde já, como marco histórico, o Encontro dos Povos Guarani da América do Sul - Aty Guasu Ñande Reko Resakã Yvy Rupa, realizado entre os dias 2 e 5, na Terra Indígena Tekoha Añetete, em Diamante D'Oeste (PR). Entre as centenas de participantes do evento, não se encontrava indígena que não estivesse encantado com  a beleza da reunião de tanta gente com fala, gestos e hábitos tão próximos, mas tão afastados no tempo e no espaço - sobretudo devido à violência da colonização nos últimos séculos.
Se alguns grupos, como os Guarani do litoral do Sul e do Sudeste do Brasil, mantêm até hoje um constante intercâmbio, em uma gigantesca rede que vai do Espírito Santo até a Argentina, outras parcelas desse povo vivem praticamente à parte das demais. Para se ter uma ideia, os Guarani da Bolívia (outrora conhecidos como Chiriguanos), que migraram para lá há mais de 400 anos, vindos da região que hoje corresponde à fronteira entre Mato Grosso do Sul e Paraguai, nunca mais haviam mantido contato regular com os Guarani do Brasil. Em Añetete, muitos se emocionaram ao conhecer seus 'parentes' distantes.
"A língua é muito parecida. A parte religiosa, também. Às vezes, a dança é um pouco diferente, um tem o violão, o outro não, mas o conteúdo é muito parecido. Somos um só povo", orgulha-se Marcos Tupã, cacique da aldeia de Krukutu de São Paulo, lembrando os vários momentos em que os xamãs Guarani exibiram seus cantos e danças durante o encontro. "Acima de tudo, é maravilhoso, muito bonito esse reencontro", diz Williams Cerezo Villa, representante dos Guarani da região de Chuquisaca, na Bolívia.

Williams diz que os Guarani da Bolívia não veem contradição entre participar da vida política do país e manter as tradições.

Em um mundo como o Guarani, em que "cultura" é um termo estreitamente vinculado a temas como terra, saúde e educação, a pauta oficial do encontro terminou praticamente confinada a questões ligadas à área da 'cultura', conforme entendido por nós, brancos. Organizado pelo Ministério da Cultura  (MinC), o evento culminou no lançamento de uma carta de reivindicações, recebida pelos ministros da Cultura do Brasil, Juca Ferreira, e do Paraguai, Ticio Escobar.
A carta pede a criação e uma Secretaria Especial de Representação do Povo Guarani, vinculada ao Mercosul Cultural, com integrantes escolhidos pelos próprios indígenas, além de um debate permanente, no âmbito do bloco, sobre os direitos dos Guarani, incluindo-se a realização de encontros regulares do povo Guarani de Brasil, Paraguai, Argentina e Bolívia. O Mercosul, reivindica o documento, tem de mudar suas leis de fronteira para permitir o "livre trânsito cultural" dos indígenas, num território que "sempre pertenceu" aos Guarani. De forma sintética, ainda são reivindicadas políticas públicas para gestão territorial, saúde, educação e comunicação, entre outros, além de combate ao preconceito e à violência contra os indígenas.
Para vários dos participantes, a carta, ainda que limitada em seus temas, já representa uma vitória, dada a histórica dificuldade na relação dos povos indígenas com os estados nacionais da região. "Estamos começando a abrir a porta e olhar para dentro da casa para ver o que tem", compara o cacique Kaiowa Ambrósio Vilhalba, da aldeia Guyraroka, de Caarapó (MS).

"O  que mais nos dói é que obrigaram as comunidades a sair, mas as áreas não foram alagadas. Hoje estão ocupadas por grandes fazendas".

Há três anos, Ambrósio foi a estrela do longa metragem Terra Vermelha, do ítalo- chileno Marco Becchis, um filme de ficção que espelhou muito de sua luta real como líder indígena.
Para representantes dos Guarani da Bolívia e do Paraguai, entretanto, onde os povos indígenas têm maior tradição de participação na vida partidária e organização como movimento social, faltou "política" no evento. "Faltou uma análise da conjuntura de cada país. Nós pedimos, mas ninguém deu bola. Há alguns indígenas que são funcionários do governo e eles não querem chocar seus patrões", critica Mario Rivarola, da Organização Nacional dos Aborígenes Independentes (ONAI), do Paraguai.
"Na Bolívi, temos um sistema muito avançado política e organicamente, também porque contamos com um indígena na presidência da República, e estamos numa transição do neoliberalismo para um Estado plurinacional. Queremos dar mais apoio a nossos irmãos do Brasil e do Paraguai", diz o já citado Williams, que, além de cacique Guarani em Chuquisaca, também representou a Assembléia do Povo Guarani (APG) no evento no Paraná.
A APG surgiu nos anos de 1980 e hoje suas decisões são reconhecidas pelo Estado boliviano como decisões tomadas pelo Povo Guarani. Tem uma estrutura de escolha de representantes em mais de 350 comunidades, com processos de decisão, mandatos e encargos bem definidos. O ex-presidente da APG Wilson Changaray se elegeu deputado para o Parlamento Boliviano em dezembro, junto com outros dois Guarani. Williams diz que os Guarani da Bolívia não veem contradição entre participar da vida política do país e manter suas tradições. "Não é que estamos esquecendo nossa cultura. Estamos entrando na política para depois transformá-la conforme os nossos interesses e pontos de vista. Estamos como que camuflados".

CONTRADIÇÕES - Para um governo com perfil do brasileiro, com ministérios inteiros francamente alinhados com setores conservadores, é certamente notável ouvir do ministro Juca Ferreira declarações de apoio às reivindicações indígenas. "Nós, do Ministério da Cultura, não temos nenhum medo da presença de povos indígenas na região de fronteira e da demarcação de suas terras", disse ele, durante sua passagem pelo encontro, no dia 5. "Pensem em nós como aliados".
As contradições, contudo, não passaram longe de Añetete. O encontro teve o patrocínio da binacional Itaipu, que tem em seu histórico uma série de violações  aos direitos dos Guarani. Do lado brasileiro, a empresa já assumiu, há alguns anos, o ônus da reparação a diversas comunidades pela retirada forçada de aldeias inteiras à época da formação do lago da usina, nos anos de 1970. A Tekoha Añetete é uma das terras indígenas formadas depois de muita disputa e ocupações de terras.
Ainda assim, há uma série de outras comunidades que não consideram resolvida sua disputa com a empresa. Entre os participantes do evento estavam Oscar Benitez e Arnaldo Alves, dois Avá - Guarani da aldeia de Vy'a Renda, uma ocupação de terra, ainda não regularizada, na região de Santa Helena, a cerca de 40 km do local onde aconteceu o encontro. Eles contam que não só a comunidade deles, como pelo menos outras quatro, nos municípios de Guaíba e Terra Roxa, não foram seque convidados a participar do evento. "Nem Funai nem Itaipu nos dão apoio lá onde estamos. Só o Ministério Público conseguiu que pelo menos haja atendimento de saúde", conta Oscar.

 Boatos começaram a circular dando conta de que os fazendeiros se articulavam para armar um confronto com os índios caso houvesse o evento.

O Ministério da Cultura diz que a responsabilidade pelos convites para o evento era dos próprios índios, conforme estabelecido nas reuniões preparatórias. Não foi possível fazer contato telefônico com o cacique Mário, de Añetete, que segundo o ministério, era responsável pelo convite às aldeias dessa região. Até o fechamento desta matéria, a assessoria de Itaipu não respondeu às mensagens eletrônicas da reportagem.
Do lado paraguaio, o problema com Itaipu é muito maior. Mario Rivarola, da ONAI, conta que que foram 60 as comunidades desalojadas por Itaipu nos anos 1970, muitas vezes com uso da força (à época, o país era governado pela ditadura do general Augusto Stroessner). "Faziam promessa, diziam que iam reassentar e indenizar as pessoas. Tudo ficou só na teoria. Os que não aceitavam sair eram levados por policiais e militares", diz. "O que mais nos dói é que obrigaram as comunidades a sair, mas as áreas não foram alagadas. Hoje estão ocupadas por grandes fazendas".
Rivarola diz que o contraste com a situação das comunidades brasileiras, que já receberam indenização de Itaipu, é gritante. "Aqui elas já têm escolas, postos de saúde. Lá, ninguém recebeu um tostão de Itaipu, o dinheiro foi todo embolsado pelos corruptos do país", relata. Mesmo o governo de Fernando Lugo, que quebrou a hegemonia centenária das oligarquias no poder, ainda não foi capaz de reverter a situação. Ele lembra: "Durante muito tempo os liberais continuaram mandando em Itaipu, recentemente é que foi revertida a situação. Esperamos que seja montado um programa de apoio ao desenvolvimento dos povos indígenas. Até agora, o que há é, no máximo, assistencialismo.

O ESTADO CONTRA - Se o evento de Diamante D'Oeste pode ser considerado um marco na relação dos Guarani com os governos da região - uma vez que, pela primeira vez, surge a possibilidade de serem ouvidos como um povo pelo conjunto dos países que habitam -, vale lembrar que não chega a ser inédito, considerando apenas a articulação que promoveu.
Desde 2007, um grupo de organizações indígenas e indigenistas promove a campanha independente Povo Guarani, Grande Povo, com o objetivo de articular as populações Guarani dos diversos países e lutar pelo reconhecimento de seus direitos. A iniciativa surgiu como fruto do 1º e do 2º Encontro Continental do Povo Guarani, realizados ambos no Rio Grande do Sul, em 2006 e 2007. O primeiro desses encontros, em São Gabriel, lembrou os 250 anos do martírio do herói Sepé Tiaraju e reuniu mais de mil Guarani de Brasil, Argentina, Paraguai, Bolívia e Uruguai.
Ainda que, no Brasil, o governo federal se mostre mais permeável ao diálogo com os indígenas, vale lembrar que o encontro do Paraná originalmente estava programado para ocorrer no final de 2008 entre Dourados e Caarapó, no Mato Grosso do Sul. Foi transferido porque não só os políticos locais se negaram a dar apoio à realização do evento como ainda hostilizaram os organizadores.
Segundo fontes ouvidas pela reportagem, autoridades da região chegaram a dizer que seria uma 'afronta' aos governos locais a realização do evento. Boatos começaram a circular dando conta de que os fazendeiros se articulavam para armar um confronto com os índios caso houvesse o evento, e, por fim, o Ministério da Cultura resolveu transferi-lo devido à 'falta de segurança'.
No Mato Grosso do Sul vivem 45 mil dos 55 mil Guarani que moram no Brasil. A tensão entre índios e fazendeiros aumentou na região depois que, em 2008, a Funai editou portarias de demarcação de terras em 26 municípios da região sul do Estado. Desde então, o governo de André Puccinelli (PMDB) e seus prefeitos aliados vêm assumindo posturas sistematicamente contrária aos índios - chegando a disponibilizar recursos públicos para que fazendeiros contestem os estudos antropológicos que definem as terras a serem declaradas como de ocupação indígena tradicional. Vários indígenas já morreram ou foram feridos em confrontos desde então.
"Em muitas regiões do Brasil, os Guarani são discriminados e perseguidos, impedidos de acessar seus direitos. Isso é inadmissível", afirmou o ministro Juca Ferreira no encontro. E entrevistas e conversas que manteve em Añetete, ele lamentou a transferência do evento. Por enquanto, a verdadeira afronta, dos políticos sul-matogrossenses ao poder federal e aos direitos indígenas, fica por isso mesmo.



terça-feira, 18 de setembro de 2012

Trilha das Lágrimas

Cont. Matéria Super Interessante, n. 12, ano 10, dezembro de 1996.



Entre 1830 e 1839, o governo americano deportou 35.000 índios de cinco tribos para um Território Indígena a oeste do Mississipi. Eles não tiveram a mesma sorte dos Panarás. Morreram 10.000 na marcha forçada.

Em 1830, os Estados Unidos criaram um Território Indígena, a oeste do rio Mississipi, para 27 tribos. Cinco delas - os Choctaw, os Creeks, os Chicksaws, os Seminoles e os Cherokees - resistiram. Não queriam se mudar.
Foi um dos capítulos mais vergonhosos do choque da civilização ocidental com os índios. Em 1831, líderes da tribo Choctaw, subornados, entregaram suas terras. Mil índios caminharam 980 quilômetros escoltados por soldados. Metade morreu. Em 1836, 15.000 Creeks foram deportados; 3.500 morreram.
Os Chicksaws andaram 400 quilômetros e foram mais poupados. Os Seminoles, da Flórida, lutaram de 1835 a 1842. Três mil foram removidos, mas a tribo habita, até hoje, os pântanos de Everglades, na Flórida.
A transferência dos Cherokees ficou conhecida como a A Trilha das Lágrimas. A Suprema Corte reconheceu seus direitos, mas o governador da Georgia não quis conversa: em 1838, atacou e deportou 20.000. Foram 1.300 quilômetros a pé sob inverno gelado. Morreram 4.000.
Hollywood ainda não contou essa história.